A teoria do valor tupinambá: e nós com isso?

 

CALDEIRA, Jorge. A teoria do valor tupinambá. Folha de S. Paulo, São Paulo, 31 de maio de 2015. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/05/1635380-a-teoria-do-valor-tupinamba.shtml> Acesso em: 08/09/2020.


    No filme Ágora (direção de Alejandro Amenábar, 2009) é posta uma questão filosófica interessante. Em Alexandria, capital do Egito - ano três depois de Cristo, vivia em uma grande biblioteca o escravo Davus. Davus era escravo de uma filósofa e a servia em tudo que ela fazia, daí, mesmo escravo, se apaixonou pela filosofia. Mas atraído pela chegada da nova ordem social trazida pelo Império Romano (o cristianismo) se encontra em um conflito de valores em que precisa escolher entre a filosofia – a qual ama e defende -, ou deixar-se atrair pela liberdade advinda com a emergência da religião. Pois, a contar de ter ficado livre (pois é o que prega a religião agora instituída na sociedade) observa os valores cristãos oprimirem a sua liberdade de expressão e criticidade, visto que agora a filosofia é vista como profana pelos políticos e religiosos.

A história nos faz pensar, entre outras coisas, sobre a ética, a moral, as ações coletivas e particulares; mas sobretudo, o que move nossas ações? Como e por quê agimos? O que objetivamos? Em que nos baseamos? Em quem ou que pensamos?

Em seu ensaio A teoria do valor tupinambá o jornalista e escritor paulista Jorge Caldeira, partindo da análise de uma conversa documentada entre o francês Jean de Léry (autor do relato) e um indígena tupinambá no Brasil no século XVI acerca da noção de ambos sobre economia e natureza, o escritor nos contempla com reflexões filosóficas e históricas sobre a nossa relação com os recursos naturais, precisamente sobre a noção de valor por nós atribuídos à natureza e ao consumo.


Pintura de índia tupinambá, obra do holandês Albert Eckhout (1610-65)

A verdadeira história analisada por Caldeira se passa na baía de Guanabara (atual região costeira oceânica fluminense) especificamente em 1560. Primeiramente, o autor descreve o diálogo – o qual é surpreendente, e pós concluir a descrição, dá a sua interpretação do diálogo. É interessante que em seguida Caldeira aprofunda ainda mais o estudo do diálogo, relacionando-o com a história do pensamento econômico. Desse modo, o ensaísta continua sua exposição dividindo o texto em categorias ou tópicos, continuando a refletir sobre os respectivos assuntos inferidos do diálogo: Ambiente, Tempo Livre, Direção, Karl Marx, Fontes.

Em Ambiente, Caldeira destaca a riqueza em tecnologia e nos avançados conhecimentos em medicina natural – em referência aos indígenas em geral, e em relação aos tupinambás, destaca a desenvolvida agricultura que possuíam, cita inclusive produtos como milho e algodão:

“Criaram a tecnologia de cultivo de alguns produtos agrícolas hoje básicos de toda a humanidade: milho, algodão, amendoim e tabaco se espalharam por todo o planeta a partir dos cultivares domesticados por eles” (CALDEIRA, 2015, p. 4). 

Interessante, essa auto-subsistência se nota em diferentes povos isolados ou não do mundo exterior, inclusive nos tempos atuais como mostra o documentário A Revolução dos Cocos (Dom Rotheroe, 1999), que mostra aluta do povo Bougainville (ilha no pacífico antes pertencente a Papua Nova Guiné) contra a exploração dos recursos locais por uma mineradora inglesa e por sua independência. Devido a conflitos armados e ao impedimento de sair do território, os moradores da ilha inventaram meios alternativos para sobreviverem como energia elétrica, combustível, comida e remédios, tudo a partir de cocos.

No tópico Tempo Livre, o autor argumenta - em relação aos tupis - por essa eficiência tecnológica aliada a preservação eles trabalhavam o necessário para a alimentação imediata, bem como para armazenamento: 

“Estudos realizados por antropólogos no século 20 mostraram que o número médio de horas diárias de trabalho necessárias para a manutenção deste padrão de vida não excedia três. Por isso, os tupis tinham muito tempo livre” (CALDEIRA, p. 4).

Posteriormente continua a argumentar que eles utilizavam esse tempo livre para festejar, cultuar e demais atividades de lazer. Aliás o autor, mesmo que superficialmente, aborda a noção de felicidade em Aristóteles, e faz reflexões interessantes sobre a felicidade tupinambá e do francês. Será que aborda a felicidade hoje? Só o leitor lendo para saber.

Em Direção, o escritor discorre sobre as teorias dos valores de troca, divisão do trabalho e a tendência da natureza humana, tipos de trabalho e a virtude. Para isso, recorre ás ideias do economista escocês Adam Smith e novamente do filósofo grego Aristóteles, aprofundando a discussão anterior e o debate desses conceitos e a relação com os valores do tupinambá e do francês Léry, os quais inclusive, a pesar de serem opostos, possui como centro do debate a natureza.

Por sua vez em Marx, Caldeira continua o debate anterior, no entanto agora nos leva às ideias do filósofo e sociólogo alemão Karl Marx: 

“Quando produzir se torna tudo no pensamento econômico, "natureza" passa a ser quase nada. Esta será a definição dominante de Adam Smith –mas não apenas dele. Karl Marx iria ainda mais longe” (CALDEIRA, p. 8).

Disso ele discorre sobre mercadoria, capitalismo, liberdade, mercado, trabalho, etc. confrontando os dois pensadores e aprofundando a discussão. Cita inclusive trechos de O Capital (1867), livro do filósofo alemão que ainda hoje é importante referência quando se debate o capitalismo e o valor na economia, onde aí se inclui os recursos naturais. 

Por fim em Fonte, Jorge Caldeira conclui o seu pensamento abordando aspectos da liberdade e refletindo sobre os ideais de economia defendidos pelo movimento iluminista do século XVIII. Ademais, conclui as ideias contidas no relato entre o francês Jean de Léry e o velho tupinambá. Para o tupinambá os europeus eram “grandes loucos”, insanos e ladrões das gerações futuras, visto que para ele a preservação e a economia dos bens da terra são necessárias para alimentar-se e para as gerações futuras, sendo a preservação, o objeto maior da atividade econômica. Por outro lado, para o francês acumular bens, inventar e realizar comércio é o fim da natureza, ir além das necessidades.

De fato, os valores mudam a depender do tempo histórico, da cultura e da sociedade. As discussões atuais acerca das mudanças climáticas e de uma sociedade mais sustentável iniciadas na segunda metade do século XX dá luz a esse conteúdo e debate, o que é salutar.

A teorias de valor da natureza inferidas no diálogo revela duas noções de antagônicas que se assemelham com os dias atuais. De certo modo hoje há um dilema semelhante ao do personagem Davus: desenvolvimento da economia ou preservação da natureza? É possível conciliar?

O ensaio é um texto interdisciplinar, rico em conteúdo e promotor de reflexões importantes em voga no presente. Recomendo fortemente a leitura do texto a estudantes das ciências sociais e humanas, a professores e pesquisadores; sobretudo a todos aqueles que pensam em sua relação com a natureza, seja em particular ou em comunidade.

E reforço. Hoje, em relação ao meio ambiente e ao consumo o que move nossas ações? Como agimos? O que pensamos e queremos para o futuro? O velho tupinambá tem muito a nos ensinar, basta estarmos dispostos a pensar e agir. E para você leitor, quais são os seus valores?



Referências👇

ÁGORA. Direção de Alejandro Amenabár. Espanha: Mod Producciones, 2009. (127 min).

A REVOLUÇÃO DOS COCOS. Direção de Rom Rotheroe. Reino Unido: National Geographic, 1999. 50 min. Disponível em: <https://vimeo.com/57951787> Acesso em: 08/09/2020, 9h e 24 min.

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