O mistério continua: Descartes e Putnam - o gênio e a cuba
DESCARTES,
René. Primeira Meditação, p. 93 - 97; Segunda Meditação, p. 99 - 106. In.: DESCARTES, René. Meditações Sobre Filosofia Primeira.
Tradução de Fausto Castilho. Coleção Multilíngue de Filosofia. Campinas, SP:
Editora Unicamp. 1° edição, bilíngue português - latim, 332 páginas, 2004.
Imagine uma pessoa deitada sobre uma
cama dentro de um quarto clínico. Agora, imagine que exista alguém com
conhecimentos cirúrgicos junto a este corpo desacordado, alguém como um
cirurgião ou cientista que, ao abrir o crânio dessa pessoa desacordada, remove
todo o seu cérebro com cuidado. Retirado inteiramente todo o cérebro da cabeça
do infausto, o cientista maluco, digamos, coloca então o órgão dentro de uma
cuba, isto é, conserva o cérebro inteiro dentro de um grande recipiente, um
tanque.
Por
conseguinte, o cientista maluco liga ao órgão - agora conservado dentro do
recipiente, cabos conectados a um grande computador. Outrora os estímulos e
comandos eram realizados pelos neurônios ao corpo. Todavia, agora o cérebro
passa a receber estímulos e comandos elétricos por meio da grande máquina. Isso
significa que o cérebro pode receber qualquer estímulo, comando ou impressão do
computador, algo artificial, ilusório. Esse computador é comandado por uma
pessoa, o cientista.
Que
história de terror! não parece? A autoria desta ficção macabra, digo, foi o
filósofo estadunidense Hilary Putnam (1926 - 2016). Putnam foi um contemporâneo
estudioso da filosofia da mente, da ciência e da linguagem. Ao criar o
experimento hipotético do cérebro em uma cuba, objetivou problematizar a
certeza da verdade de nossa realidade e nosso mundo exterior, uma questão
metafísica.
Entretanto,
há séculos outro filósofo questionou nossa realidade sensível. Texto fonte
objeto desta resenha, em sua obra Meditações
Sobre Filosofia Primeira (1641), o filósofo, matemático e físico francês
René Descartes (1596 - 1650) em especial nos capítulos 1 e 2 da obra - Primeira Meditação e Segunda Meditação,
respectivamente, lançou luz sobre a relação mente-corpo. Até que ponto podemos
ter certeza da verdade dos sentidos? podemos confiar neles? qual o método mais
confiável? Estas são algumas das questões postas por Descartes.
O
estilo de escrita de Descartes nesta obra é interessante, pois ao mesmo tempo
em que é fácil compreendê-lo, a leitura é instigante. Seu modo de escrita
assemelha-se a alguém que descreve
uma história em uma conversa entre amigos. O narrador (Descartes) é ao mesmo
tempo o personagem que expõe suas inquietações e pensamentos. Dito isto, o
filósofo na Primeira Meditação (parte 1 da obra) expõe suas dúvidas em relação
à confiabilidade dos sentidos, do senso comum, de sua própria consciência, da
razão e de seu fundamento.
Ele
diz no início que: “Tudo o que recebi, até presentemente, como o mais
verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos” (DESCARTES,
2004, p. 93). Ou seja, ele traz reflexões sobre o embasamento da certeza e
segurança da verdade dos sentidos, que são adquiridos desde a infância. Por
isso Descartes lança a hipótese dos sonhos, reflete acerca de em que medida
nossa realidade poderia ser um sonho ou não. É nesse momento que ele lança a
hipótese de um deus enganador ou gênio maligno.
Já
fez a relação com o experimento de Putnam, não é? Pois é isso mesmo! Se
estivesse vivo Descartes certamente nos questionaria: qual a certeza de que
verdadeiramente você, caro leitor, está lendo esta resenha agora por este dispositivo
eletrônico? Podemos confiar em nossos sentidos? A presunção que Descartes faz é
a de que poderia existir um gênio ou ser maligno que poderia manipular nossos
sentimentos e ações, assim, nos enganando. Como em um sonho, essa realidade
seria facilmente manipulável. Todavia o autor faz distinção entre esse ser -
que seria manipulador - do supremo deus cristão, que para ele, é totalmente bom
e perfeito.
Mantendo
a coerência lógica de argumentos e ideias ao longo de todo o texto -
especialmente na passagem dos capítulos - em seguida, na Segunda Meditação
(parte 2 da obra) Descartes lança, agora, não mais dúvidas, mas sim argumentos
em resposta às primeiras meditações. Ao abordar a natureza do conhecimento e a
relação mente-corpo, agora o filósofo francês busca explicações. Ao refletir
sobre si mesmo, intuitivamente e, cuidadosamente ter analisado suas dúvidas,
Descartes, então, enuncia sua famosa frase “cogito,
ergo sum” (2004, p. 100), proposição em latim que significa “penso, logo
existo”.
Esta
frase denota um raciocínio em que o ser pensante percebe-se a si mesmo. Estaria
posto o fim da dúvida da existência real e verdadeira de nossa realidade? Penso
que não. Embora pareça explicativa por si mesma, a sentença “penso, logo
existo” traz mais dúvidas do que respostas. Se eu penso, então existo? se eu
existo, portanto penso? ou então tudo o que pensa, existe? nosso corpo depende
da mente e vice-versa? Descartes não justifica sua famosa frase nesta parte,
mas sim posteriormente.
Ao
decorrer do texto e do restante da obra, portanto, o autor firma a razão como melhor método de validação e
certeza de nossa existência e realidade. O cogito
é, para o autor, não uma ideia que vem por meio dos sentidos, nem da
imaginação. Disso, Descartes depreende que pelos pensamentos serem inatos são,
assim, verdadeiros e inequívocos, pois provém unicamente da razão.
A razão, por sua vez, passa a ser o único meio confiável, incontestável e
universal. Pela razão se atinge a verdadeira filosofia e ciência. Por isso ele
dá como exemplo a matemática, onde 2 mais 2 são sempre 4, seja em sonho ou não.
Decorrente
disto, o cogito interfere nas coisas
do mundo, daí a validade da matéria. Ora, se penso e existo, logo existo por
meio de algo, de uma extensão, que é o corpo. Para Descartes, mesmo que haja um
gênio ou ser do mau, o que é pouco provável,
o ato de pensar na possibilidade deste ser maligno ou dessa realidade
falsa existir - bem como nas coisas do mundo, já me dá a garantia de minha
existência, visto que penso. Isto posto, a questão agora se desdobra em outras:
não é mais se existo ou não existo, é acima de tudo se sou e se posso conhecer
ou não que sou manipulável; se posso saber que estou ou não numa cuba.
Outra
questão é se tenho corpo e se ele é real: podemos saber se o que é percebido
pelos sentidos não passa de uma matriz (realidade simulada ou imaginária em que
nossas realidade e mente são manipuladas por alguém ou algo)? que as sensações
não passam de estímulos computacionais? será que este gênio/cientista pode me
fazer pensar que ele não existe? e se o computador ou o gênio programaram algo
em nós? Ele pode estar brincando sadicamente comigo. Desse modo, se
considerarmos os argumentos de Descartes com o experimento hipotético do
cérebro numa cuba de Hilary Putnam nos encontramos num novo ciclo de questões
não respondidas, retornamos novamente às questões dos sentidos e à razão. Este
mistério não se acaba por aqui.
Descartes
é considerado um dos principais nomes do racionalismo. Em oposição ao
empirismo, não confiava exclusivamente nos sentidos nem na experiência para
tirar conclusões universais e verdadeiras. A obra em si divide-se em mais seis
meditações, partes em que o autor aborda outras diferentes problemáticas além
das versadas nesta resenha. Vale conferir. Principalmente você que se interessa
em filosofia da mente e da ciência, bem como neurociência. Para aqueles que
nunca pensaram no assunto, como eu, a leitura da referida obra de Descartes
torna-se cativante. Nos cativa a meditar e a avaliar sobre nós mesmos, nossas atitudes,
a infinitude do universo, bem como nos convida a refletir sobre a complexidade
e maravilha da mente e do corpo humano. Tudo ainda mais repleto de mistérios.
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