Na balança, dois pesos: A dicotomia entre o Público e o Privado no Direito

LEONEL, Ana Leticia Anarelli Rosati. A superação da dicotomia Direito Público e Direito Privado: uma proposta coerente com a constitucionalização do Direito Civil. P. 57-76. In.: Direito civil-constitucional. CONPEDI/UFS. Coordenadores: Ilton Garcia Da Costa, Clara Angélica Gonçalves Dias, César Augusto de Castro Fiuza. Florianópolis: CONPEDI, 2015.


Imagem. Fonte desconhecida.

    O Direito é, entre outras coisas, a positivação dos valores e dos anseios da sociedade de sua época e de seu tempo histórico. É também o conjunto de regras que regem as relações entre os membros de uma mesma sociedade, bem como o estudo de tais regras. Ele revela os conflitos, as dificuldades e impõe mudanças também. Durante toda sua existência o Direito tem desempenhado um importante papel nas relações sociais e em todas as esferas da sociedade.
    Em seu artigo, a especialista em Direito Ana Leticia Leonel disserta sobre a aparente dicotomia existente entre o Direito Público e o Direito Privado, e busca também em seu escrito a superação de tal ideia. Além do mais, discute acerca da constitucionalização do Direito, um outro conceito importantíssimo para se compreender. Para isto, a autora se utiliza da pesquisa bibliográfica como fonte de pesquisa para dissertar sobre os temas discutidos.
    Após introduzir o seu texto a autora segue para o primeiro capítulo do artigo em que tece uma análise histórica sobre o conceito de dicotomia no Direito. Tendo sua origem no Império Romano, a separação do Direito em dois grandes ramos — público e privado — tinham os critérios das fontes de origem e da aplicação prática, dependendo do tipo de relação entre as partes envolvidas à época. Para a autora, essa aparente dicotomia se estendeu, e na modernidade essa separação se concretizou no Iluminismo e posteriormente com o advento do “Estado Liberal” (2015, p. 61).
    Entretanto, nessa aparente dicotomia a autora dá destaque à sua função organizacional de estudo, com a finalidade de um ensino mais didático. Assim, o ensino dos princípios e regras que se aplicam somente a um ramo ou a outro se tornaram mais fáceis de serem transmitidos e compreendidos. Ainda que pese seu caráter didático, para a autora — especialmente nos cursos de Direito ao longo das últimas décadas — essa separação ou dicotomia tem criado uma certa complexidade em algo que deveria ser, em tese, de simples entendimento.
    No tópico seguinte, Leonel discorre sobre o conceito e as diferenças entre os dois ramos do Direito — o público e o privado. Em suma, o Direito Público diz respeito às relações de interesse geral da sociedade, que normatizam as condutas nas relações públicas, como os direitos penal, administrativo, constitucional, processual e internacional público etc. Por sua vez, o Direito Privado rege as normas que mediam as relações privadas de interesse particular entre os indivíduos de tal sociedade, a exemplo tem-se o direito civil, do consumidor e do trabalho etc. (2015, p. 63).
    Para muitas pessoas da sociedade — inclusive para alguns próprios operadores do Direito — haveria essa divisão tácita entre as normas públicas e as de interesse privado, como se elas fossem independentes. Infelizmente, esse pensamento na verdade enfraquece a real percepção do que é o Direito real. Se assim fosse, essa divisão daria ao Direito um aspecto de incoerência e incompletude.
    Na verdade o Direito é em si mesmo interligado. Deve ser harmônico e coerente em sua organização e aplicação. A Constituição é como um espelho que de si irradia todo o espírito normativo de tal ordenamento jurídico. Na Constituição estão os direitos fundamentais, os quais estão baseados na dignidade humana. Especialmente hoje no caso brasileiro, o Direito Privado interage muito com o Direito Público em sua prática cotidiana. Como vemos por exemplo nos casos de desapropriações, de questões trabalhistas, do consumidor e de família.
    Embora as principais normas do Direito Público estejam na Constituição e por outro lado as normas do Direito Privado estejam no Código Civil, a dicotomia reside, portanto e unicamente, na divisão sistemática com fins didáticos nos atributos necessários para o estudo e melhor compreensão do Direito, não havendo na prática tal dicotomia, a qual é apenas aparente. Na realidade, princípios e normas tidos como particulares têm impacto geral e refletem, inclusive, além da esfera individual, assim como o direito tido como público.
    Após clarificar os ramos do Direito e dissertar sobre a aparente dicotomia, Ana Leticia Leonel no terceiro tópico de seu artigo desenvolve a análise da questão e busca meios para superar essa aparente divisão no Direito por meio de sua desconstrução teórica. Para isto, ela aborda e defende a constitucionalização do Direito civil como forma de superação do pensamento dicotômico.
    Para a autora, "o direito é organismo vivo, contemporâneo à realidade e caracterizado como um dinamismo” (2015, p. 65). Embora no passado a dicotomia teve sua utilidade, hoje ela é imprecisa para com a realidade e desnecessária. Desse modo, a autora evoca o fenômeno da constitucionalização do direito civil para argumentar em desfavor da dicotomia e dissertar sobre esse fenômeno jurídico recente no ordenamento jurídico brasilero, em que na prática não há dicotomia.
    A própria noção de constitucionalização é ambígua. Em primeiro lugar, envolve a reconstrução das fontes jurídicas em torno do próprio eixo constitucional, onde a Constituição distribui autoridade entre os vários corpos normativos associados a este ou aquele ramo do direito.
    Em segundo lugar, a expressão implica que certas regras ou princípios aplicáveis ​​a este ou aquele ramo do direito têm valor constitucional. Assim, a constitucionalização especifica o apelo de determinados princípios ao campo constitucional, como o direito de participar da vida da família e da comunidade, que são princípios do direito de família consagrados no Código Civil brasileiro e considerados princípios de valor constitucional.
    Considerada em sentido mais material ou substancial, a constitucionalização ainda designa a influência que a Constituição pode exercer sobre os princípios e regras aplicáveis ​​em determinado ramo do Direito, independentemente do processo formal implementado. Nesse sentido, a constitucionalização dos ramos do Direito pode parecer incompleta, pois é difícil encontrar na Constituição regras substantivas reais que regem o direito de família ou o direito do domínio público, por exemplo.
    A meu ver, a constitucionalização dos ramos do Direito marca a supremacia da Constituição, permitindo-lhe situar-se no campo do saber jurídico. Direito comum a todos os outros direitos, o direito constitucional se torna capaz de fundar os diversos ramos do Direito, tornando-se assim a lei mãe, a lei suprema, de onde irradiam os fundamentos. Ao fazer assim, tem-se a primazia do Direito Público sobre o Direito Privado.
    A autora conclui, portanto, que embora possua caráter didático nos cursos e faculdades, a dicotomia que divide o Direito em duas grandes partes não se aplica e não se vê na realidade concreta. De fato essas duas partes constituem-se em um “único ordenamento jurídico, com normas interligadas, que se complementam e geram constantes influxos recíprocos” (2015, p. 73). E reitera que essa ideia de uma aparente dicotomia está decaindo de acordo com o tempo e com a percepção dos operadores do Direito e pela própria sociedade, especialmente quando se pensa a respeito das fontes das normas.
    O artigo de Ana Letícia Leonel é muito bem escrito e possui uma leitura muito prazerosa. Por ser um texto científico, a autora utiliza termos específicos de sua área, o que não dificulta o entendimento do texto, visto que possui coesão e uma boa coerência. A sua lógica de argumentação se mantém até o fim.     Assim como numa balança (um dos símbolos do Direito), a autora consegue equilibrar bem, na mente do leitor, os temas e os conceitos discutidos. Afinal, os direitos em si, possuem os mesmos fundamentos, a dignidade da pessoa humana.
    Na balança do Direito, não há divisão entre as normas mediadoras das relações públicas e privadas, elas são iguais em valor e força. Em analogia a uma balança, o direito é firme, e ainda que em constante movimento, precisa se manter em equilíbrio. Desse modo, a sociedade e o ordenamento jurídico também se manterão.

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